domingo, 21 de novembro de 2010

Cortar

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

(A Moça Tecelã-Marina Colasanti)



"Escrever é cortar palavras..." a frase é quase uma máxima do jornalismo, principalmente, para quem vezenquando precisa assumir a edição de uma página e precisa cortar, escolher palavras mais curtas, transformar parágrafos para que o texto fique sucinto e que não perca o sentido.
Essas mudanças também fazemos na vida, mudamos de caminho, abreviamos relações, vivemos histórias mais curtas, haicais, contos de uma página (ou uma noite) e nas viradasde páginas nem percebemos que não temos apenas um livro. Temos uma biblioteca inteira com livros de tamanhos e capas bem diferentes, histórias bem feitas, romances polêmicos, bobos, diferentes, com trilhas sonoras exclusivas ou dotadas de um empréstimo barato da história quase principal.
Tenho eu, alguns livros que, de vez em quando, trancada na minha biblioteca afetiva começo a pensar como seria se eu reescrevesse hoje. Algumas cenas me fazem rir bastante, outras ainda conseguem me trazer algumas mágoas. Só que tinha um livro em especial que me incomodava muito, não pela história ter tido vários desdobramentos que eu não queria e desconheço até hoje porque se encaminharam desta forma, nem era mais isso que me incomodava e sim o fato de não ter um final.
Nem todas as histórias possuem finais felizes e eu não estava em busca de um, mas de alguma frase de efeito, um acontecimento novo, algo que motivasse a finalizar em grande estilo aquela história. Tem algumas semanas que venho observando como seria possível colocar o ponto final. Procurava, avaliava elementos, rememorava grandes mágoas e ainda assim faltava alguma coisa.
Mas hoje, enquanto relia os últimos capítulos que foram escritos por nós dois, percebi que não faltava mais nada e que qualquer parágrafo a mais ia deixar esse livro sem sentido, sem condições de virar roteiro para novelas ou filmes e, então tal qual a moça no bastidor que bordava a bela paisagem no conto de Marina Colasanti, eu bordei a fita em meus cabelos, arrematei o ponto e, com muito cuidado, cortei a linha.




2 sobrou pra você!:

Jorge Bastos disse...

Sem Final? um corte? sei não... tudo tem início, meio e fim... beijos
saudades

Unknown disse...

Belíssimo texto!! Parabéns amiga! muito boa a cortada da linha, fica melhor assim mesmo.. e que nos arremates, não se perca o contorno do desenho, do bordado... que se pendure o quadro na parede, guarde-se o livro e fique para recordar a história que mesmo não tendo sido, foi!
Agora, focada em novos projetos, novos livros, continue ampliando sua biblioteca, espero merecer pelo menos um tópico, de um capítulo... Beijos!